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sábado, 2 de abril de 2011

Angelical

__Agora vai-te. Não és mais bem vindo nessa casa. E não me olhes assim. Tuas lágrimas nada significam diante de teus atos.
__Vou mesmo! Qualquer lugar longe de você é melhor do mundo para mim. E tenha a certeza de que, enquanto o senhor estiver vivo, não colocarei meus pés nessa terra.
__É um favor que me fazes...
__Ainda implorará o meu perdão. Não lhe perdoarei jamais! É o meu pai, mas não é digno da minha misericórdia.
__Não fales assim, filho meu, teu pai está com a cabeça quente, amanhã mesmo arrepender-se-á de tudo que fez ou disse...
__Cala-te Maria, não me arrependerei de coisa alguma. Quanto a ti, ingrato de uma figa, vai-te de uma vez! E não levarás daqui sequer uma agulha!
__Não quero nenhum centavo seu, português maldito! Essa roupa que estou vestindo agora é sua. Tome-a.
__Meu filho, não faça isso...
__Oh, minha mãe, se uma dor ainda me inunda o peito é por você. Perdoe-me por causar-lhe tanto sofrimento. Agora vou-me. Deixe-me beijar-lhe o rosto, mamãe. Adeus, minha mãe.
__Não me envergonhes mais, vista essa calça!
__João, não o deixe ir... É nosso único filho... Valha-me Nossa Senhora de Fátima... Rogério, volte! Não filho meu, não vá... Solta-me João, olha o que fizeste!
Nú, como vim ao mundo, deixei o lar materno, decidido a jamais voltar. Mamãe chorava descompassadamente. Uma multidão aglomerara-se em frente da casa. Saí correndo, chorando, sofrendo, meu sexo totalmente exposto, meus olhos protegidos por minhas mãos.

Naquele dia um anjo desceu do Céu: enviado diretamente por Deus. Não conseguia controlar o cérebro nem as emoções: uma tempestade torrencial inundava-me o rosto. Mas havia um anjo e ele me envolveu em suas asas. Lá me sentia protegido e por um momento esqueci do mundo e das palavras. Falava então a língua dos anjos.

Nasci num lar puritano, de imigrantes portugueses. Desde criança fui preparado para seguir os passos de meus pais. Casamento, filhos, negócios. Mas algo deu errado. Em algum momento o trem descarrilou. Quando cônscio da situação, já era tarde demais.
Decepcioná-los significava matar tanto a eles quanto a mim próprio, com tal gravidade que as noites tornavam-se dias. Meu rendimento na escola reduzia-se à mediocridade, já não tinha amigos e emagrecia notadamente. A doença que me acometera era forte e, apesar da grande resistência que impunha, ruí paulatinamente como o aço ante a água o oxidando.
No dia em que saí daquela casa, não me sentia mal apesar da dor, que se mostrara ainda mais profunda do que pressentira. Toda a hipocrisia, falsidade e dissimulação finalmente se desvanecera e isso era a libertação depois de um século de martírio. Porém, havia nutrido a vã esperança de que papai me entenderia, afinal eu era um enfermo, me daria suas mãos e tudo ficaria bem. E isto era o que machucava mais. Contudo, mesmo contra mim próprio, entendia-o. Sabia que estava além da sua compreensão.
Desde que me abri à vida, enviava regularmente cartas para mamãe, como forma de aliviar-lhe o sofrimento. Sabia que me reprovava, mas eu era seu filho querido, nascido em suas entranhas. Acontecesse o que fosse, estaria sempre ali, pronta para receber-me com braços abertos. Chegou então um tempo em que não mais blasfemava contra Deus. Descobri que minha doença não era tão grave e, inclusive, por diversos ângulos podia ser considerado normal. Descobri que o amor entre dois anjos é angelical.
Na última carta que recebi de mamãe, era intimado a voltar ao sítio. Papai queria me ver. Joguei o envelope na cama. Resistir não podia. Quando cheguei em casa, o portão estava aberto. A mesma disposição dos móveis. Uma aura de pó envolvia tudo. Vozes aproximavam-se.
__Papai.
Resistir não podia.


Silvestre (Dezembro de 2006)

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